terça-feira, 29 de outubro de 2013

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Deliremos, pois, por um momento. O mundo, que está de pernas para o ar, vai se erguer sobre os próprios pés: Nas ruas, os automóveis serão pisoteados pelos cães.O ar estará limpo dos venenos das máquinas e não terá mais poluição além daquela que emana dos medos humanos e das humanas paixões.As pessoas não serão dirigidas por automóveis, nem serão programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado, nem assistidas pela televisão. A TV deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupa. As pessoas trabalharão para viver, em lugar de viver para trabalhar. Nenhum país prenderá os jovens que se neguem a cumprir o serviço militar, mas sim aqueles que desejem fazê-lo. Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão de qualidade de vida a quantidade de coisas.Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de ser fervidas.Os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos.Os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas.O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza e a indústria militar não terá mais alternativa senão declarar-se falida para sempre.Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.Os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua. Os meninos ricos não serão tratados como dinheiro, porque não haverá meninos ricos. A educação não será privilégio de quem possa pagá-la. A polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, voltarão a unir-se, bem juntinhas, ombro-a-ombro. Uma mulher negra será presidente do Brasil e outra mulher negra será presidente dos Estados Unidos. Uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru. Na Argentina, as loucas da praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer os tempos da amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja corrigirá alguns erros das tábuas de Moisés. O sexto mandamento ordenará: "Festejarás o corpo". O nono, que desconfia do desejo, irá declará-lo sagrado. A Igreja também ditará o décimo primeiro mandamento, do qual o Senhor havia se esquecido: "Amarás a natureza, da qual fazes parte". Todos os penitentes serão celebrantes e não haverá noite que não seja vivida como se fosse a última, nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro. EDUARDO GALEGO

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